Dos saberes aos Sabores
O ato de ver exige distância. O objeto deve estar
longe para poder ser visto. Na visão, o objeto é exterior ao corpo. O objeto
visto é o objeto que não se tem. Sem essa separação entre o olho que vê e o
objeto que é visto não pode existir objetividade.
O objeto de contemplação pode me dar conhecimento.
Pode me dar prazer do belo. Mas ele está distante de mim. Não posso comê-lo.
Não mata a minha fome. Não me dá vida. Sinto-me tentado a concordar com um
acima de inspiração psicanalítica que diz que “a grande tristeza na vida
humana, que começa na infância e continua até a morte é que ver e comer são
duas operações diferentes. A beatitude eterna (o mito de Fedro) é um estado em
que ver é comer”.
Barthes, ao afirmar que o envelhecimento o levara a
cultivar a desaprendizagem dos saberes, confessou que ele aprendera, naquele
momento de sua vida, que as dádivas dos olhos não lhe bastavam. Há um verso de
T. S. Eliot que, creio, se aplica à experiência de Barthes: “E o fim de todas
as nossas explorações será chegar ao lugar de onde partimos e conhece-lo então
pela primeira vez”. Os caminhos da alma são circulares, voltam sempre ao
princípio. Ao final de sua longa caminhada de toda a vida pelos caminhos da
ciência, ele se descobre chegando ao lugar de onde partira: o lugar da criança.
Sapientia é conhecer a vida pela boca. É assim que a criancinha conhece o
mundo, misticamente, de olhos fechados, a boca sugando o seio da mãe. Seio:
primeira e inesquecível metáfora para o mundo. O mundo tem de ser um objeto de
deleite. “Nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de sabedoria, e o máximo de
sabor possível. O sabor vive onde a visão morre: o contato. Os olhos são
amantes apolíneos: sentem-se felizes em contemplar de longe o objeto amado. Mas
a boca é dionisíaca: precisa comer o objeto amado...
Barthes anuncia aos seus ouvintes perplexos que
está abandonando os respeitáveis instrumentos da ciência. Deixou a sala de
aula, lugar dos saberes. Está se transferindo para a cozinha, lugar dos
sabores.
Há textos que se parecem com uma lisa superfície de
gelo sobre a qual o leitor desliza. O pensamento se move fácil: tudo lhe é
conhecido com familiaridade. Mas, ao final desse exercício de patinação sobre o
conhecido, o pensamento continua o mesmo. Quando as palavras deslizam
suavemente como um patinador sobre o gelo, é certo que nada de novo irá surgir.
Ao final, tudo estará como sempre foi. Bem que Hegel advertiu de que “o que é
conhecido com familiaridade não é, de fato, conhecido, pela simples razão de
ser familiar.
Barthes, mestre nas sutilezas da psicanálise, sabia
que a verdade aparece no lapsus, quando o familiar é rachado, quando o
pensamento tropeça. O francês tem uma palavra para sabedoria. É sagesse,
palavra família, conhecida por todos. Barthes poderia tê-la usado. Não o fez.
Ao invés de sagesse usou sapientia, latim. Barthes usou o latim para provocar
uma queda. Sagesse, sabedoria, todo mundo pensa o que é. Mas, na “encruzilhada
da etimologia”, ele encontra sapientia, que quer dizer conhecimento saboroso.
Sapere, em latim, tem o duplo sentido de “saber” e “ter sabor”. Essa
duplicidade de sentidos está preservada e esquecida no português. O Aurélio
registra, para o verbo “saber”, ao lado do seu uso comum de “ter conhecimento”,
o uso já fora de moda de “ter o sabor de”. Lembro-me do tempo em que se dizia:
“essa comida sabe bem”, isso é, “essa comida é saborosa”.
Autor: Rubem
Alves
Livro:
Variações sobre o prazer


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