Dorme sobre o meu seio
Dorme sobre o meu seio,
Sonhando de sonhar...
No teu olhar eu leio
Um lúbrico vagar.
Dorme no sonho de existir
E na ilusão de amar.
Tudo é nada, e tudo
Um sonho finge ser.
O espaço negro é mudo.
Dorme, e, ao adormecer,
Saibas do coração sorrir
Sorrisos de esquecer.
Dorme sobre o meu seio,
Sem mágoa nem amor...
No teu olhar eu leio
O íntimo torpor
De quem conhece o nada-ser
De vida e gozo e dor.
Autor: Fernando Pessoa
PEDIDO
VIR A SER
ENAMORADOS
Dorme sobre o meu seio,
Sonhando de sonhar...
No teu olhar eu leio
Um lúbrico vagar.
Dorme no sonho de existir
E na ilusão de amar.
Tudo é nada, e tudo
Um sonho finge ser.
O espaço negro é mudo.
Dorme, e, ao adormecer,
Saibas do coração sorrir
Sorrisos de esquecer.
Dorme sobre o meu seio,
Sem mágoa nem amor...
No teu olhar eu leio
O íntimo torpor
De quem conhece o nada-ser
De vida e gozo e dor.
Autor: Fernando Pessoa
PEDIDO
Eu não quero que você seja eu
Eu já tenho a mim.
O que quero é que você chegue
Com seu poder de chegar
E de me desenvolver pra mim.
Que você chegue com seu dom
De também me fazer chegar
Perto de mim...
Pra me fazer ver o que sou e que só você viu.
Pra eu ser capaz de amar também
O que só você amou.
Eu não quero que você seja igual a mim.
Eu já tenho a mim.
Não quero construir uma casa de espelhos
Que multiplique minha imagem por
Todos os cantos.
Quero apenas que você me reflita
Melhor do que julgo ser.
Autor: Pe. Fábio de Melo
Banquete
Que o seu chegar seja mais
que um simples chegar.
Que seja o símbolo de um
tempo de demoras e permanência.
Deitarei a tolha branca sobre
a mesa
E permitirei que suas pontas
venham
Cobrir também a minha alma.
Cada vez que nossa mesa é
posta,
Muito mais que um alimento,
A vida nos é oferecida!
Que seja Assim.
Que nossa fome de amor
E de fraternidade seja sempre
saciada
nos olhares dos quais nos
serviremos.
Autor: Fábio de Melo
Se Erra Minh’alma...
Se erra minh’alma, em contemplar-vos tanto,
e estes meus olhos tristes, em vos ver,
se erra meu amor grande, em não querer
crer que outra coisa há aí de mor espanto;
se erra meu espírito, em levantar seu canto
em vós, e em vosso nome só escrever,
se erra minha vida, em assi viver
por vós continuamente em dor, e pranto;
se erra minha esperança, em se enganar
já tantas vezes, e assi enganada
torna-se a seus enganos conhecidos;
se erra meu bom desejo, em confiar
que algu’hora serão meus males cridos,
vós em meus erros só sereis culpada.
Livro dos Sonetos
VIR A SER
Eu procuro por mim.
Eu procuro por tudo o que é meu
e que em mim se esconde.
Eu procuro por um saber que ainda não sei,
mas que de alguma forma já sabe em mim.
Eu sou assim...
Processo constante de vir a ser.
O que sou e ainda serei
são verbos que se conjugam
sob área de um mistério fascinante.
Eu me recebo de Deus e a Ele me devolvo.
Movimento que não termina
porque terminar é o mesmo que deixar de ser.
Eu sou o que sou na medida em que
me permito ser.
E quando não sou é porque o ser eu não
soube escolher.
Autor: Pe. Fábio de Melo
ENAMORADOS
Ele e Ela
sobem a trilha da montanha.
Os dedos da mão dele,
roçando os dedos da mão dela.
Dos dedos dele,
labaredas invadem o corpo dela.
E dos dedos dela,
outra labareda incendeia o corpo dele.
Dois vultos dourados,
singram o cálido ar,
sob um céu de porcelana.
As pétalas ígneas
da rosa guardada no regaço
comungam com os astros
os segredos do advento da vida.
Uma aurora imaculada
os guarda,
trazendo o fruto do éden,
vindo dos segredos do mundo.
Agora, um rebento e ele e ela
descem pela trilha da montanha.
Autor: José Cimino
DESCONCERTO
Roda gigante de minério-economês
sufoca a raiz do ideais. Sobre a lousa
dos patriotas pousam coroas de cravos
e a Nação ostenta um rosto frio e pálido.
O horizonte é fechado e obtuso.
Um vento corrosivo talha a verde planta.
O ímpeto alado de ousada aves
maçã na fonte os anseios do homem ético.
O povo é tesouro soterrado. Dores
impostas do alto descem e os que beijam
o Pendão de outras terras suas estranhas
alienam na arena do festim global.
No campo e na cidade, donos do poder
costuram a política de linhas tortas.
Baixa sobre a Pátria a sombra do desânimo,
que imêmore vive à margem da sua história.
Autor: José Cimino
Soneto do amigo
Enfim, depois de tanto erro passado
Tantas retaliações, tanto perigo
Eis que ressurge noutro o velho amigo
Nunca perdido, sempre reencontrado.
É bom sentá-lo novamente ao lado
Com olhos que contêm o olhar antigo
Sempre comigo um pouco atribulado
E como sempre singular comigo.
Um bicho igual a mim, simples e humano
Sabendo se mover e comover
E a disfarçar com o meu próprio engano.
O amigo: um ser que a vida não explica
Que só se vai ao ver outro nascer
E o espelho de minha alma multiplica...
Vinicius de Moraes
O verbo no infinito
Ser criado, gerar-se, transformar
O amor em carne e a carne em amor; nascer
Respirar, e chorar, e adormecer
E se nutrir para poder chorar
Para poder nutrir-se; e despertar
Um dia à luz e ver, ao mundo e ouvir
E começar a amar e então sorrir
E então sorrir para poder chorar.
E crescer, e saber, e ser, e haver
E perder, e sofrer, e ter horror
De ser e amar, e se sentir maldito
E esquecer de tudo ao vir um novo amor
E viver esse amor até morrer
E ir conjugar o verbo no infinito...
Ser criado, gerar-se, transformar
O amor em carne e a carne em amor; nascer
Respirar, e chorar, e adormecer
E se nutrir para poder chorar
Para poder nutrir-se; e despertar
Um dia à luz e ver, ao mundo e ouvir
E começar a amar e então sorrir
E então sorrir para poder chorar.
E crescer, e saber, e ser, e haver
E perder, e sofrer, e ter horror
De ser e amar, e se sentir maldito
E esquecer de tudo ao vir um novo amor
E viver esse amor até morrer
E ir conjugar o verbo no infinito...
Vinicius de Moraes
Soneto de Fidelidade
De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.
De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.
Vinícius de Moraes
DUAS ALMAS
Ó tu, que vens de
longe, ó tu, que vens cansada,
entra, e, sob este
teto encontrarás carinho:
eu nunca fui amado, e
vivo tão sozinho,
vives sozinha sempre,
e nunca foste amada...
A neve anda a
branquear, lividamente, a estrada,
e a minha alcova tem
a tepidez de um ninho.
Entra, ao menos até
que as curvas do caminho
se banhem no
esplendor nascente da alvorada.
E amanhã, quando a
luz do sol dourar, radiosa,
Essa estrada sem fim,
deserta, imensa e nua,
podes partir de novo,
ó nômade formosa!
Já não serei tão só,
nem irás tão sozinha.
Há de ficar comigo
uma saudade tua...
Hás de levar contigo
uma saudade minha...
Autor: Alceu Wamosy
Livro dos Sonetos
OS RIOS
Magoados, ao
crepúsculo dormente,
Ora em rebojos
galopantes, ora
Em desmaios de pena e
de demora,
Rios, chorais
amarguradamente..
Desejais regressar...
Mas, leito em fora,
Correis... E
misturais pela corrente
Um desejo e um
angústia, entre a nascente
De onde vindes, e a
foz que devora.
Sofreis da pressa, e,
a um tempo, da lembrança...
Pois no vosso clamor,
que a sombra invade,
No vosso pranto, que
no mar se lança,
Rios tristes!
Agita-se a ansiedade
De todos os que vivem
de esperança,
De todos os que morrem de saudade...
Antologia Poética
Autor: Olavo Bilac
“INICIATIVAS”
Poema em prosa de Aníbal Machado
Faça o que lhe digo. Solte primeiro uma borboleta.
Se não amanhecer depressa, solte outras de cores diferentes.
De vez em quando, faça partir um barco. Veja aonde vai. Se for difícil, suprima o mar e lance uma planície. Mande um esboço de rochedo, o resto de uma floresta. Jogue as iniciais do lenço. Faça descer algumas ilhas. Mande a fotografia do lugar, com as curvas capitais e a cópia dos seios.
Atire um planisfério. Um zodíaco. Uma fachada de igreja. E os livros fundamentais.
Sirva-se do vento, se achar difícil.
Eles estão perdidos. Mas nem tudo o que fizeram está perdido.
Separe o que possa ser aproveitado e mande. Sobretudo, as formas em que o sonho de alguns se cristalizou. Remeta a relação dos encontros, se possível. E o horário dos ventos.
Mande uma manhã de sol, na íntegra.
Faça subir a caixa de música com o barulho dos canaviais e o apito da locomotiva.
Veja se consegue o mapa dos caminhos.
Mande o resumo dos melhores momentos.
As amostras de outra raça.
Com urgência, o projeto de uma nova cidade.
Autor: Affonso Romano de Sant’Anna
Livro: Como Andar No Labirinto
Pg. 10/11
FIM
Hoje marcamos o
destino nosso,
Na encruzilhada que
nos pôs distantes:
Não mais podes voltar
ao que era dantes,
Ao que era dantes eu
voltar não posso.
D’outros caminhos
afinal me aposso.
Somos estranhos nós:
itinerantes.
Não olhas os meus
passos oscilantes,
Sinto-te longe e em
nada me alvoroço.
Vou porque vim, sem
rumos nem caminhos,
Não sinto mais as
chagas dos espinhos,
Não sei para onde vou
nem por que vim.
Mas vou fugindo, vou
rolando a esmo:
Devo andar à procura
de mim mesmo,
Para tão cedo ter
chegado ao fim.
Livro: Rimas Antigas
Autor: Nunes
Bettencourt
INFÂNCIA
Ampara-me com teus
olhos ternos
Para que eu revisite
a graça
De ser de novo
criança.
Olha-me com tua
divina calma
Para que eu esqueça
Os desconcertos dos
meus dias.
Que seja eterna esta
materna
Forma de pousar as mãos
Sobre a minha cabeça
e dizer
Repetidas vezes as
mesmas histórias.
Ensina-me tais expressões
raras,
Suavemente tocadas por
anjos
Deposita tuas marcas
divinas
Sobre os meus
pensamentos
Que minha vida volte
a ser alegre.
E depois deixa-me
viver a paz
No silêncio de tua ausência.
Quero nascer de novo
E retornar à vida de
criança.
Autor: Fabio de Melo
Obra: É sagrado viver
(texto adaptado).
Nas
árvores de outrora os frutos de hoje
e
nos frutos de hoje
o
gosto de ontem
e
as sementes de amanhã.
Poemas de Daniel Lima
Por quem os sinos dobram?
Nenhum homem é uma
ilha,
isolado em si mesmo;
todos são parte do
continente,
uma parte de um todo.
Se um torrão de terra
for levado
pelas águas até o
mar,
a Europa ficará
diminuída,
como se fosse um
promontório,
como se fosse o solar
de teus amigos ou teu
próprio;
a morte de qualquer
homem me diminui,
porque sou parte do
gênero humano.
E por isso não
perguntes
Por quem os sinos
dobram;
Eles dobram por ti.
Livro: Estou de Luto
Autor: José Carlos
Bermejo
Do menos ao mais
A fraqueza é o início
da força.
A dúvida é a busca da
fé.
A queda é a causa do
levantar-se.
A indecisão é a porta
da resolução.
A ignorância é o
primeiro degrau do saber.
A curiosidade é o
pórtico do aprendizado.
A revolta é o motivo
da futura resignação.
O egoísmo é o passo
inicial do amor.
O orgulho é a ladeira
que desce até a humanidade.
A sensualidade é o
aprendizado do amor universal.
A noite é a matriz
donde nasce o dia.
O sofrimento do
enfermo
É o principio da
esperança da cura.
A montanha eleva-se a
partir da planície.
A virtude nasce de um
vício corrigido.
A bonança chega após
a procela.
A primavera promana
do inverno.
O sol aparece depois
da escuridão.
O repouso é mais
sentido após a estafa.
A saciedade é o
apaziguamento da fome.
O sono é mais
reparador quando o dia foi trabalhoso.
O silêncio descansa
mais depois do barulho.
O encontro do ser
amado
É mais alegre após a
saudade da ausência.
Livro: Sugestões Oportunas
Autor: C. Torres
Pastorino
Pág. 111/112
SE VOCÊ QUISER
“As boas idéias não
têm idade,
apenas têm futuro.”
(Robert Mallet)
Se você quiser amar,
deixe-se encontrar
pelo amor!
Se você quiser
vencer, deixe-se encontrar
pela confiança.
Se você quiser
vibrar, deixe-se
encontrar pelos
desejos.
Se você quiser
acariciar, deixe-se
encontrar pelo
carinho.
Se você quiser
acertar, deixe-se
encontrar pela
verdade.
Se você quiser ser,
deixe-se encontrar
pelos outros.
Autor: Canísio Mayer
Livro: Sonhos em
Poesia pg. 26,27-123
Se não me falas...
Se não me falas,
Encherei meu coração
com o teu silêncio
E assim poderei
suportá-lo.
Manter-me-ei
tranqüilo
E esperarei como a
noite,
com sua vigília de
estrelas
e sua cabeça
inclinada
em sinal de
paciência.
É certo que a manhã
virá,
Que a escuridão se
dissipará,
E que sua voz se
derramará pelos céus
Em torrentes de ouro.
Rabindranath Tagore
NESTA VIDA
Nesta vida, em que
sou meu sono,
Não sou meu dono,
Quem sou é quem me
ignoro e vive
Através desta névoa
que sou eu
Todas as vidas que eu
outrora tive,
Numa só vida.
Mar sou; baixo
marulho ao alto rujo,
Mas minha cor vem do
meu alto céu,
E só me encontro
quando de mim fujo.
Quem quando eu
era infante me guiava
Se não a vera alma
que em mim estava?
Atada pelos braços
corporais,
Não podia ser mais.
Mas, certo, um gesto,
olhar ou esquecimento
Também, aos olhos de
quem bem olhasse
A Presença Real sob o
disfarce
Da minha alma
presente sem intento.
Autor: Fernando Pessoa
HOJE É O DIA!
“Um navio no porto
está em segurança, mas não foi para isso que os navios foram construídos.”
(willia Shedd)
Hoje é o dia...
De aproximar os
desejos da realidade,
De olhar para dentro,
para o alto,
para a frente,
De tornar viável um
sonho,
De ultrapassar o
preestabelecido
De saborear cada minuto como
único,
De escutar os
próprios sentimentos,
De abrir os braços
para o novo,
De encarar outros
desafios.
Hoje é o dia...
De confiar em si,
De viver no amor,
De olhar nos olhos,
De estender a mão.
para criar novas
oportunidades,
Para falar com
pessoas queridas,
Para transformar o
que incomoda,
De ser profundamente
feliz!
“Não existe um
caminho para a felicidade.
A felicidade é o
caminho.”
(Mahatma Gandhi)
Doença braba
O mundo padece de uma
doença antiga,
Dolorosa,
uma doença que
debilita o mundo
e o torna feio,
E que avança tanto
pelas entranhas do mundo
que eu temo que ela
se torne incurável.
Essa doença braba que
rói as entranhas do mundo
como se fosse
motor-serra a derrubar florestas
é a doença que atende
pelo nome espectral,
o odiento nome de
INJUSTIÇA SOCIAL.
Poemas Daniel Lima
Poemas Daniel Lima
Esquecer para Lembrar
Um amigo meu, nos
Estados Unidos, comprou uma casa velha, de mais de um século, conservada, como
muitas que por lá existem. Muitas coisas a serem consertadas. Tudo teria que
ser pintado de novo. Antes de pintar com as cores novas ele achou melhor raspar
das paredes a cor velha, um azul sujo e desbotado. Raspado o azul, debaixo dele
surgiu uma cor rosa; mais velha ainda que o azul. Raspou-a também. Aí apareceu
o creme, e depois do creme o branco... Cada morador havia coberto a cor anterior
com uma cor nova. E assim ele foi indo, pacientemente, camada após camada.
Queria chegar à cor original, que aparecia depois que todas as camadas de tinta
fossem raspadas. Finalmente o trabalho terminou. E o que encontrou foi surpresa
inesperada que o encheu de alegria. Mais bonito que qualquer tinta: madeira
linda, o maravilhoso pinho de Riga, cor de castanha contra um fundo marfim.
Parábolas: somos
aquela casa. Ao nascer, somos pinho de Riga puro. Mas logo começam as demãos de
tinta. Cada um pinta sobre nós a cor de sua preferência. Todos são pintores:
pai, mãe, avós, professores, padres, pastores. Até que o nosso corpo
desaparece. Claro, não é com tinta e pincel, é a fala. A tinta são as palavras.
Falam, as palavras grudam no corpo, entram na carne. Ao final o nosso corpo
está coberto de tatuagens da cabeça aos pés. Educados. Quem somos? “O intervalo
entre o nosso desejo e aquilo que os desejos dos outros fizeram de nós”,
responde Álvaro Campos.
Contra isso, lutava
Alberto Caeiro:
Procuro despir-me do
que aprendi.
Procuro esquecer-me
do modo de lembrar que me ensinaram, a raspar a tinta com que me pintaram os
sentidos. Desencaixotar minhas emoções verdadeiras, desembrulhar-me e ser eu,
não Alberto Caeiro, mas um animal humano que a natureza produziu. Mas isso
(triste de nós que trazemos a alma vestida!)
Isso exige um
exercício profundo, uma aprendizagem de desaprender...
Ator: Rubem Alves
Tive inveja dos santos.
Menino, desejei muito
Ser Francisco de Assis com pássaros nos ombros
E a pobreza na alma como noiva.
Hoje, ao olhar a imagem de Francisco
Sinto uma enorme tristeza,
Sinto saudade de mim,
Do menino de outrora.
Perdi-me nos caminhos.
Não mais sinto desejo
De ser um São Francisco
Assim santo, assim pobre.
Sinto somente o vaidoso desejo
De ser a sua imagem.
☼
Eu morria de medo dos meus mortos.
Da morte que morreram e em que os via.
Os meus mortos talvez também
Muito mais do que eu morram de medo
Da vida que, esta sim, causa medo.
☼
Sou livre, pensei.
Sou livre? Indaguei.
Não sou livre, senti.
Mas por amar ser livre
Fiz da servidão
A maneira de ser
Da minha liberdade.
E rebelde à humana servidão
Não sou livre talvez
Mas vivo a liberdade.
Liberdade! Deus disse,
Pode fazer na vida o que
quiser.
O mundo lhe pertence.
A vida é sua.
Leve o que achar que lhe será
melhor.
Mas pague escrupulosamente o
que escolher.
☼
És primeira pessoa
Na gramática e na vida.
Se para ti mesmo te tornaste
Uma ela, um ele, um id,
Uma terceira pessoa, um
objeto,
Então é que morreste
Há muito tempo,
É que há muito tempo já não
existes.
Nasce dos olhos o mundo
E completa-se nas mãos.
As mãos descobrem as coisas
Mais que os olhos
E dão formas às formas, e
vigor.
É pelas mãos que se confirmam
os olhos.
É por elas que o universo
Diz a sua palavra,
A que revela o segredo
De seu silêncio essencial.
SONHO
Sonhei esta existência de venturas,
Sonhei que o mundo era só d’amor,
Não pensei que havia amarguras
E que no coração habita a dor.
Sonhei que m’afagavam s ternuras
de leda vida e que jamais pallôr
marcou na face humana as
desventuras
que a lei de Deus impoz com rigor.
Sonhei tudo azul e cor de rosa
E a sorte ostentando-se furiosa
Rasgou o sonho formoso que tive;
Sonhando sempre eu não tinha sonhado
Que n’esta vida sonha-se acordado,
Que n’este mundo a sonhar se vive!
Autor: Fernando Pessoa
Livro: Poesias ocultistas pg. 45
O ESSENCIAL É SABER VER
Mas isso...
Isso exige um estudo
profundo,
uma aprendizagem de
desaprender...
procuro despir-me do
que aprendi
procuro esquecer-me
do modo de lembrar que me
ensinaram,e raspar a
tinta com que me pintaram os sentidos.
Nós. Casas. Vão nos
pintando pela vida a fora até que a memória não mais existe do nosso corpo
original. O rosto? Perdido. Máscara de palavras.
Quem somos? Não
sabemos. Para saber é preciso esquecer, desaprender.
Segundo Bernardo
Soares nós só vemos aquilo que somos. Ingênuos, pensamos que os olhos são
puros, dignos de confiança, que eles realmente vêem as coisas tais como elas
são. Puro engano. Os olhos são pintores: eles pintam o mundo de fora com as
cores que moram dentro deles. Olho luminoso vê mundo colorido; olho de trevas
trevoso vê mundo negro.
Nem Deus escapou.
Mistério tão grande que ninguém jamais viu, e até se interditou aos homens fazer
sobre ele qualquer pintura; segundo mandamento. Mas os homens desobedeceram.
Desandaram a pintar o grande mistério como quem pinta casa. A cada nova demão de
tinta, mais o mistério se parecia com as caras daqueles que pintavam. Até que o
mistério desapareceu, sumiu, foi esquecido, enterrado sobre as montanhas de
palavras que os homens emperravam sobre o seu vazio. Cada um pintou Deus do seu
jeito.
Disse Ângelus
Silesius: “O olho através do qual Deus me vê é o mesmo olho através do qual eu
vejo Deus”.
Para se voltar a
Deus, é preciso esquecer, esquecer muito, desaprender o aprendido, raspar a
tinta...
Houve alguém que
gritou que Deus estava morto. Claro. Ele não conseguia encontrá-lo naquele
quarto de horrores. O que ele queria, de verdade era quebrar todas aquelas
máscaras para poder de novo contemplar o mistério infinito.
Na parábola do filho
pródigo, em resumo, o pai disse ao filho mais novo que gastara seus bens e se
dizia indigno de ser filho: “meu filho, eu não somo débitos”
Ao filho mais velho
que reclamava créditos de seu pai este lhe respondeu:
“meu filho eu não
somo créditos”.
Assim é o amor. Não
tem porquês. Ama porque ama.
Com um Deus assim, o
universo fica mais manso e os medos se vão.
Autor: Rubem Alves
Texto: Transparências
da eternidade.
Pag. 19 a 23.
A VIDA
Na água do rio que procura o mar;
No mar sem fim; na luz que nos encanta;
Na montanha que aos ares se levanta;
No céu sem raias que deslumbra o olhar;
No astro maior, na mais humilde planta;
Na voz do vento, no clarão solar;
No inseto vil, no tronco secular,
- A vida universal palpita e canta!
Vive até, no seu sono, a pedra bruta...
Tudo vive! E, alta noite, na mudez
De tudo, - essa harmonia que se escuta
Correndo os ares, na amplidão perdida,
Essa música doce, é a voz, talvez,
Da alma de tudo, celebrando a Vida!
Olavo Bilac